Exigência de abstinência como único remédio, e não como desfecho desejável, enche os olhos de quem acredita em bala de prata
Um mundo sem crimes e sem drogas (lícitas e ilícitas) não existe. Mas a conclusão de que a violência é uma causa direta da presença de usuários de drogas (ilícitas) é falsa. A maior taxa de homicídios no Brasil, em Altamira, no Pará (Atlas da Violência 2017), é uma “prova incontestável” do erro. Os “culpados”, nesse caso, foram as violações ao meio ambiente e a remoção forçada de milhares de famílias durante a construção da usina de Belo Monte.
Propriedades farmacológicas de determinadas drogas, como álcool e outras substâncias psicoativas, podem estimular atitudes, comportamentos e ações violentas. Entretanto, não é possível afirmar que as transgressões cometidas ou sofridas pelas pessoas com quadros graves de dependência decorrem apenas da fissura, da abstinência, da necessidade premente de financiar o consumo. Características do comércio ilegal, psicológicas e familiares, são tão determinantes de situações de violência que impedem discernir motivações individuais das contextuais.
Sabe-se pouco sobre os padrões dos mercados e consumo de drogas no país. Temos poucas pesquisas e muitas interpretações equivocadas. A abordagem unidimensional da droga, como problema exclusivo de segurança, superlota presídios, dificulta a atenção à saúde dos dependentes e, paradoxalmente, produz insegurança. E o recurso explicativo às marcas morais, como fraqueza da vontade e culpabilização, isoladamente dificultam ou impedem que a atenção à saúde cumpra sua atribuição de proteção à vida.
Experiências relativamente bem-sucedidas na saúde requerem a compreensão sobre a complexidade e o longo curso dos processos psíquicos e sociais da dependência. O recurso a uma única causa apela ao pânico, ao “não tenho nada que ver com isso, quero essa gentalha longe daqui” e resulta em políticas que não respondem aos problemas causados pelas drogas, nem àqueles resultantes da violência.
Atualmente, considera-se que o atendimento a quem faz uso nocivo de drogas é análogo ao de outras condições crônicas. Não se espera que um paciente com diabetes fique definitivamente livre de recidivas e mesmo do agravamento do estado de saúde, em determinadas circunstâncias. Soluções mágicas, voltadas a responder a anseios de segmentos da população e meios políticos, não são compatíveis com a natureza do problema. A exigência de abstinência como único remédio, e não como desfecho desejável, enche os olhos de quem acredita sincera ou cinicamente em bala de prata. As avaliações de programas baseados em alternativas habitacionais, bem como unidades de saúde e estratégias de atendimento em locais e horários flexíveis, têm sido favoráveis, embora ainda restem dificuldades para encontrar moradias adequadas para indivíduos com transtornos mentais avançados.
Atualmente, organismos internacionais — como o escritório da ONU sobre drogas e crimes (UNODC) — criticam a “visão ultrapassada de alguns países”, que discriminam e estigmatizam usuários, e os remetem às instâncias criminais e “de cura instantânea”, quando deveriam se integrar aos esforços para encarar o uso nocivo de drogas (lícitas e ilícitas) como um desafio mundial de saúde pública. Apesar dessas recomendações, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) — sob pesada influência e açodamento do deputado Osmar Terra (PMDB-RS) — aprovou uma política nacional de drogas orientada pela criminalização, abstinência e pelo tratamento compulsório. O acionamento do rolo compressor não foi motivado por boa-fé, ingenuidade ou desconhecimento sobre o debate internacional. Uma bandeira tosca de segurança pública, em ano eleitoral, tem dupla vantagem: não afeta lucros do narcotráfico, que crescem com o aumento dos riscos e violência, e sinaliza intolerância. Em tempos de crise econômica e política, o cultivo à polarização e ao sectarismo passa, em certas ocasiões, por determinação e rigor. Contudo, quando internação compulsória e ação policial se justapõem, a atitude de reserva dos usuários diante dos serviços sociais e de saúde aumenta.
Melhorar a atenção aos usuários no curto prazo é imprescindível. As unidades e as equipes públicas psicossociais não são suficientes, mas demonstraram efetividade. Portanto, a rede pública tem que ser ampliada. Também não é aceitável manter a fragmentação e a baixa coordenação entre políticas públicas envolvidas com drogas. Os fóruns interministeriais e as instituições locais devem planejar e implementar programas cooperativos. Não é que esteja bom, mas piorar é uma droga. O mau uso da legislação causa danos. Usar o cargo no Executivo para vetar a liberdade de escolha de pessoas vulneráveis ativa sequelas autoritárias. E, dependendo do “filtro”, usuários serão aprisionados (literalmente ou em comunidades terapêuticas) segundo critérios estereotipados (pobreza, cor da pele e estilos de vida, signos corporais), que podem conotar agressão e perigo. Normas legais segregadoras e proibicionistas poderão deixar parcelas da população ainda mais à margem das prerrogativas de direitos básicos, inclusive de saúde.
Ligia Bahia é professora da UFRJ
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